quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

|| CONTO: As regras do amor

Não me lembro bem como era seu nome. Mas, se não me falha a memória, chamava-se Clóvis. Não posso descrevê-lo detalhadamente, pois ultimamente minhas lembranças estão escassas e parece que a cada momento me deixam mais a mercê das histórias que outras pessoas contam a meu respeito. Histórias essas que fazem minha mente gritar para mim mesmo que deveria lembrar daquilo, mas velho como sou e a cada dia mais próximo de vestir a dita “roupa de madeira”, fica cada vez mais difícil trazer à mente fatos do meu passado.

Clóvis, entretanto, é um caso à parte. Creio que nunca o esquecerei até que o último instante de meu derradeiro dia chegue. Ele era magro, como eu naquele tempo, cabelos cuidadosamente penteado para o lado, óculos grossos grudados no rosto fino e de um jeito todo contido.

Andávamos sempre juntos, acompanhados ainda de um outro amigo... Como era o nome dele mesmo? Caramba! Vamos dizer que o nome dele era Luís (disseram-me que o presidente do Brasil se chama assim). Éramos como irmãos ou primos, apesar de vez em quando, como parente mais velho, Luís nos desse alguns tapas. Tirando isso, sentia como fôssemos da mesma família.

O mais saidinho, pra não dizer aquele que não tinha vergonha de se engraçar para o lado das meninas, era Luís. Esse era o maior motivo (será que tinha outros? Não me lembro.) para que andássemos com ele. Era cheio de galanteios, o rapazote Luís, e o incrível é que o danado, na maioria das vezes, ganhava a recompensa por suas frases de efeito, um beijinho adocicado das pequenas beldades da vizinhança. O que me faz lembrar de Clóvis é que ele sempre ficava impressionado com isso e passou a pedir a Luís que o ensinasse a ser como ele.

Luís aceitou de pronto e logo passou a dar suas incríveis instruções, mas não sem antes ditar-lhe algumas regras:

"Nunca olhe para as feias; jamais queira as tagarelas; mantenha distância das mal-vestidas; esqueça-se das piolhentas e despreze as mal cheirosas."

"Só isso? Você só tem essas condições?" perguntou Clóvis.

"Apenas isso." Luís disse esboçando seu sorriso branco e perfeito.

Fitei Clóvis e vi seus olhos brilhando com a expectativa de vir a ser tão beijoqueiro quanto Luís. Porém, quero logo lhe adiantar, caro leitor, que meu amigo Clóvis iria se arrepender do pedido que fizera a Luís. Não quero e nem posso me alongar nesse pequeno texto, mas o que ocorreu nos dias que se seguiram foi o seguinte: a cada meninota que Clóvis almejava, Luís lhe dizia algo que lhe tirava as parcas forças.

“Olhe o que lhe falei a respeito das regras! Será que não vê que essa garota tem os dentes tortos? Ela se encaixa nas ditas ‘feias’, por isso está descartada.”

Quando Clóvis lhe apontou outra menina, Luís retorceu os lábios e desdenhou:

“Já conversei com aquela; ela fala pelos cotovelos. Não serve para você.”

O fato era que o tutor de Clóvis não lhe deixava sequer chegar perto de alguma menina. Meu amigo, então, além de tímido começava a ficar traumatizado, pois aquelas regras passaram a fazer parte de sua vida desde então. Isso o acompanhou pelos anos seguintes e o deformou emocionalmente. Já tínhamos adentrado na fase da juventude quando eis que surgiu... (Meu Deus, faça-me lembrar do nome dela! Ah, sim!), Juliana em sua vida.

Aquela garota, se não me falha a memória, era linda e fazia qualquer moleque espinhento – como eu naquele tempo – sentir um friozinho na barriga numa simples troca de olhar. Qualquer um sentir-se-ia um afortunado por apenas andar de mãos dadas com Juliana. Logo descobri que Clóvis nutria, como todos nós, aquela certa empolgação quando o nome de Juliana era mencionado em nossas conversas nada pueris.
“Daria tudo por um beijinho dela”, sonhava um colega nosso.

“Você já notaram aqueles olhos verdes que ela tem? Parecem verdadeiras esmeraldas!”, exclamou outro, de olhos fechados, certamente se imaginado diante da própria.

Após mais comentários repletos de bajulices com relação à Juliana proferidos por outros garotos, notei que meu amigo Clóvis permanecia quieto e, de certa forma, até tenso. Resolvi então dirigir-me a ele:

“E você, Clóvis, o que tem a dizer sobre Juliana?”, indagei.

Clóvis passou a mão rapidamente pelos cabelos, certificando-se de que continuavam firmes para o lado, e fez uma careta antes de comentar:

“Ela não se encaixa no meu perfil; Veste-se muito mal.”

“Mas é claro!” retrucou um jovem junto a ele. “Ela é de família humilde, como todos nós!”

Naquele exato momento lembrei-me de Luís, que não estava mais entre nós. Tinha se mudado para outra cidade com os pais, meses atrás. Mas deixou a tal “regra” fincada nos miolos de seu discípulo. Regras estas que faziam, segundo minha observação, Clóvis travar uma pequena batalha dentro de si, pois, sem dúvida, seu coração estava extremamente atraído por Juliana, mas seu cérebro, programado nos tempos de meninice, repelia a ideia de um dia ficarem juntos.

É, amigo leitor, as batalhas travadas dentro do ser humano sãos as mais ferrenhas e dolorosas que se possa imaginar, que faz o homem se isolar, adoecer sem que esteja infectado por bactéria alguma, temer o incerto, perder-se em embates com o próprio eu... (Será que já ouvi isso em algum lugar?). Meu amigo Clóvis estava imerso numa dessas funestas lutas sentimentais, entre o coração e a mente.

Passamos alguns dias sem nos ver até que um dia ele apareceu em minha casa e agarrou no meu colarinho como alguém desesperado pela solução de um grave problema.

“O que devo fazer, meu amigo? Juliana é a garota perfeita para o meu coração, mas minha mente a rejeita!”
Acalmei-o e sentamos em algumas cadeiras que tínhamos na sala de minha casa.

“Você já se dirigiu a ela? Ao menos trocou algumas palavras com ela?”

“Nunca. Jamais me atrevi a contrariar as regras... até agora.”

Naquele momento bati com força e raiva com a mão na minha coxa direita e falei sobre a pieguice daquelas tais regras. O amor não poderia ser prescrevido por um conjunto de determinações da mente, disse-lhe. Aquele sentimento inigualável muitas vezes é irracional e recai sobre nós como num passe de mágica. Por fim perguntei-lhe:

“Como você pode permitir que algo tão maravilhoso como o amor, que só pode vir do Deus criador, seja podado por essas regras idiotas formuladas por um garoto gabola? Liberte-se disso, meu amigo. Siga seu coração!”

Clóvis ficou sem palavras por um momento. Por fim sorriu, levantou-se, caminhou em minha direção, abraçou-me e saiu correndo para a rua. Aquela foi a última vez que o vi. Meu amigo Clóvis não apareceu mais lá em casa ou em qualquer outro lugar da cidade. O motivo apenas soube um mês depois de nosso último encontro.

Quem me contou foi um outro rapaz, muito próximo a nós. O nome dele? Esquece. O fato é que Clóvis, ao sair de minha casa, chegou correndo na frente da casa da bela Juliana e pediu para falar-lhe. A mãe da garota, apesar de desconfiada, permitiu-a trocar algumas palavras com meu amigo. Ele, todo seguro de si e esquecendo-se das malditas regras, derramou-se em palavras encantadoras a fim de fazê-la entender seus sentimentos em relação a ela. Após terminar seu doce e apaixonado repertório perguntou a ela o que achava. A resposta foi surpreendente:

“Não podemos ficar juntos”, disse ela secamente.

“Por quê? Qual o problema comigo?”

“Você é pobre, como eu. Minha mãe disse que não posso casar com alguém sem recursos. Ela disse que isso deve ser como uma regra para mim, para alcançar a felicidade.”

Aquelas palavras foram como uma flechada mortal no peito de meu amigo. Mais uma vez uma regra entrara em sua vida, fincando-se como um obstáculo para encontrar o amor. Ouvi dizer que Clóvis chorou copiosamente e naquele mesmo dia foi embora da cidade para morar com parentes distantes.

Ao saber dessa história procurei Juliana para ter com ela uma conversa franca. Encontrei-a conversando com algumas amigas numa praça perto da escola em que estudávamos. Pedi para falar-lhe por um momento e ela aceitou. Não lembro quantos anos eu tinha, mas tenho quase certeza que estava a caminho dos 18. Distanciamo-nos das amigas e sentamos num dos bancos espalhados pelo local. Fitei-a nos olhos verdes que mais pareciam o mar e disse sério:

“Soube que o Clóvis lhe procurou para se declarar e você o esnobou.”

Ao ouvir sobre o fato ela baixou a cabeça. Falou em voz baixa.

“Sim, ele me procurou e contei sobre a ‘regra do amor‘ que minha mãe me deu. Mas...”

“Sabe o quanto isso é ridículo, não é?”, interrompi. “O engraçado é que ele também tinha uma regra que o afastava de você. Por achar que você se vestia mal se desvencilhava do verdadeiro sentimento que nutria por sua pessoa.”

Ela ergueu o cenho e juntou as sobrancelhas numa expressão de surpresa.

“Eu me visto mal?”, ela quis saber.

“Ele achava. Mas isso não importa agora. O fato é que ele foi falar comigo e lhe abri os olhos quanto à crueldade que é ser refém de uma regra ditada por outra pessoa que não seja você próprio. Que por mais tola que algo seja, mas sair do seu coração, vale a pena prestar bem atenção nele.”

Ela ficou me encarando por um momento e então uma lágrima escorregou de seus olhos, deixando um rastro em sua face rosada.

“Eu ia falar uma coisa antes e você me interrompeu.”

“É verdade.”

“Eu ia falar que pensei muito no que aconteceu naquela noite com o seu amigo. No que falei para ele. Houve momentos em que chorei lembrando de minhas próprias palavras, pois elas foram cruéis e ofensivas.
Pensando que aquela regra teria ferido e afastado para longe a pessoa que gosto, se fosse ela a vir ter comigo naquele dia. Decidi que não posso pôr meus sentimentos por essa pessoas em jogo por causa de uma regra ambiciosa, só porque ela é pobre como eu. Não posso peder... você.”

Aquelas últimas palavras fizeram o mundo girar por um momento até que me esforcei para que tudo voltasse a ficar no lugar. Pisquei uma infinidade de vezes até que duas coisas saíram de minha boca: uma foi um simples sorriso de satisfação; outra foi uma frase mais ou menos assim:

“Também tenho uma regra do amor.” Senti como se Juliana prendesse a respiração, apreensiva com as palavras que viriam a seguir. Continuei: “Sempre siga o seu coração e seja muito feliz.”

Sorrimos juntos e naquele mesmo dia andamos juntos de mãos dadas pela praça.

Você quer saber o que aconteceu depois disso, amigo leitor? Se Juliana e eu ficamos juntos? Infelizmente não posso responder a essas indagações no estado em que me encontro. Mas algo me chama a atenção a todo o instante na casa onde resido agora. Há uma mulher, já com uma certa idade, que de vez em quando fala comigo e me chama de “querido”. Fica sempre perto de mim e parece também se preocupar comigo. Ela tem olhos verdes intensos e me fazem lembrar de uma certa garota. O nome dela é... Puxa vida! Já me esqueci.

Naasom A. Sousa Outubro/2010

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