terça-feira, 23 de outubro de 2007

Conto - AQUELES BRAÇOS FORTES*.

* CONTO VENCEDOR DO CONCURSO LITERÁRIO DA FIC DE PARAGOMINAS - 2007


Ele balançava preguiçosamente acomodado em uma rede na varanda ventilada de sua confortável casa. Era o que mais gostava de fazer agora: apenas sentir o vento sacudir-lhe delicadamente os cabelos levemente grisalhos enquanto pensava na vida, sorria junto à felicidade e lembrava-se de sua infância.

Foi quando mais uma visão de anos passados povoou-lhe a mente e arremessou-o à época em que o pai os deixou, saindo de casa para viver com uma ninfeta cor-de-jambo. Momentos de angústia. Dor. Insegurança. Desestruturação.

Restaram então apenas a mãe — uma mulher baixinha, perfeita dona de casa, com expressões de serenidade estampadas no rosto redondo —, duas irmãs e ele, que se via com quatorze anos. A devotada mãe, para não ouvir os estômagos dos filhos gemerem de fome, saiu para trabalhar fora de casa. Arranjou um emprego penoso no mercado, onde tinha que carregar caixas e mais caixas, sacos pesados ao extremo, pesos e mais pesos. Não demorou muito para que ele começasse a notar algumas mudanças nela. Os braços dela passaram a tomar formas mais rijas, pareciam engrossar, tornarem-se fortes. Foi dali em diante que um dos sete pecados capitais se apossou dele. Não pode evitar a inveja dos braços forte de sua mãe.

Aos olhos dele, ela parecia tornar-se mais resistente a cada dia. Caixas mais pesadas eram suportadas e levadas de um lugar a outro com menos esforço. Com o tempo a mãe até conseguia levar duas caixas num braço e sustentar as duas filhas no outro. Aquilo parecia ilusão, mas seus olhos de fato podiam contemplar os músculos desenvolvidos dela em ação. E a inveja aumentava.

Na escola ele ouvia alguns alunos tecerem comentários sobre sua mãe. “Ela é mais forte que um touro”, disse certa vez uma aluna metida. “Um touro? Você tá brincando? Ela deve levantar um carro acima da cabeça sem fazer muita força!” retrucou alguém perto. Ele ouvia e ficava consternado. Quando ele iria ser forte como a mãe? Ele achava que nunca, já que agora ela trabalhava dia e noite quase que incessantemente.

Quando arranjou uma namoradinha, de nome Aninha, levou-a em casa para conhecer a mãe robusta num dos raros momentos de folga desta. Foi um desastre. Aninha comparou os braços de palito dele com os da mãe, que mais pareciam duas toras de madeira. A namoradinha ficou impressionada, assim como todos os que notavam aqueles bíceps e tríceps avantajados e bem definidos. A inveja aumentava.

Uma idéia veio-lhe à mente. Entrou numa academia de um amigo que, ao ver muitas lágrimas e insistências, dispensou dele as mensalidades, já que não podia pagar. Começou a malhar depois das aulas. Puxava as irmãs pelas mãos e as deixava sentadas sobre uma pequena pilha de pesos enquanto ele se encharcava de suor exercitando os músculos do braço.

Alguns meses se passaram. Os braços dele dobraram de tamanho; os da mãe triplicaram. A inveja aumentava.

Houve um dia em que um rapaz briguento, que praticava halterofilismo na mesma academia e era conhecido pelo apelido de “Tijolo”, quis brigar com ele pelo simples fato de terem se esbarrado acidentalmente no estreito espaço entre um parelho de musculação e outro. Tijolo era enorme. Ele sabia que não sairia vencedor se viessem a lutar com aquele grandalhão. Chegou à conclusão que não queria lutar. Tijolo não quis esperar suas justificativas e desferiu-lhe um soco no meio do nariz. Ele caiu sentado, zonzo, quase que desacordado. Um gosto de sangue surgiu na boca. Levou a mão ao nariz e descobriu que de lá escorria sangue. Com certeza o golpe quebrara seu nariz. Tijolo pareceu não se dar conta que com um simples golpe já se tornara o vencedor. Partiu para cima do mais fraco com ímpeto, mas parou instantaneamente. O garoto ensangüentado e acuado pode notar os braços fortes da mãe em volta da cintura de Tijolo, segurando-o. Sem o menor esforço ela levantou o rixento e levou-o para fora da academia. Lá fora, todos puderam ver a maior surra que Tijolo já levara na vida. A mãe ainda o fez prometer nunca mais cruzar o caminho do filho.

A partir daquele dia, todos, em vez de respeitá-lo, caçoaram dele. Não pode cuidar de si mesmo? Cadê a mamãezinha para te proteger? Olha só, já vai pra debaixo das barras da saia da mamãe! Tudo era motivo para o rebaixarem a nada. Seus olhos se enchiam de lágrimas. Seu coração se despedaçava. Aqueles braços fortes da mãe! Inveja para quê? Para quê ter braços iguais àqueles? Eles só trouxeram para ele sentimentos de inferioridade, derrota e humilhação.

Trancou-se no quarto, abespinhado. Chorou. Gritou. Não quis mais saber da mãe nem das irmãs. Comida já não ingeria há um bom tempo. Então seus braços passaram a afinar novamente. Deitou uma hora sobre a cama e adormeceu.

Sonhou com o pai voltando para casa, ajoelhando aos pés da mãe e pedindo perdão por tê-la trocado por outra mulher mais jovem. O que viu em seguida foi o pai sendo jogado a um quarteirão de distância da casa por aqueles braços poderosos e impetuosos.

Ele despertou gritando alto, sobressaltado. A porta foi imediatamente arrombada e a mãe, numa velocidade incrível, correu e se debruçou sobre ele, abraçando-o.

“Tudo bem, querido. Eu estou aqui para protegê-lo”, foi o que ela disse, com suavidade. Naquele exato momento ele percebeu que, apesar de tantos músculos, aqueles braços eram extraordinariamente aconchegantes ao seu redor. Deu-se conta que nunca sentira a força deles a surrarem-lhe o corpo. Mas agora sentia a intensidade daquele amor maternal a envolver-lhe calorosamente. Sentia-se tranqüilo, seguro, amado.

Não tinha mais inveja ou ódio daqueles braços fortes. Nada daquilo importava mais.

Ele voltou ao presente como que saindo de um transe.

Respirou fundo e sentiu novamente o vento refrescar-lhe o rosto. Sorriu gostoso. Olhou para o lado onde havia outra rede armada. Lá uma velhinha miúda de braços grossos dormia sossegada, despreocupada. Ele sorriu mais uma vez, admirando-a, concluindo que por mais fortes que os braços da mãe pudessem ter se tornado no passado, nunca puderam se igualar à força do amor que ela carregava dentro do seu pequeno coração.



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Autor: Naasom A. Sousa

Um comentário:

Sammis Reachers disse...

Amado irmão, parabéns! Que este seja o início de uma carreira de reconhecimento e prêmios. Glorificado seja o Senhor, que concede a cada um o dom necessário para fazer a obra. E a literatura é uma excelente ferramenta, a ser usada para alcançar aqueles que, de outra forma, não seriam alcançados. E também para edificar e - por que não? - entreter o povo de Deus.
Um abração do irmão
Sammis